sábado, outubro 14, 2006

intruso

foto de Mara Mitchell

Trecho 429, Livro do Desassossego, Bernardo Soares

Em todos os lugares da vida, em todas as situações e convivências, eu fui sempre, para todos, um intruso.
Pelo menos, fui sempre um estranho. No meio de parentes, como no de conhecidos, fui sempre sentido como alguém de fora.
Não digo que o fui, uma só vez sequer, de casa pensado. Mas fui-o sempre por uma atitude espontânia da média dos temperamentos alheios.
Fui sempre, em toda a parte e por todos, tratado com simpatia.
A pouquíssimos, creio, terá tão pouca gente erguido a voz, ou franzido a testa ou falado alto ou de terça. Mas a simpatia, com que sempre me trataram, foi sempre isenta de afeição.
Para os mais naturalmente íntimos fui sempre um hóspede, que, por ser hóspede, é bem tratado, mas sempre com a atenção devida ao estranho e a falta de afeição merecida pelo instruso.
Não duvido que tudo isto, da atitude dos outros, derive principalmente de qualquer obscura causa intrínseca do meu próprio temperamento.
Sou por ventura de uma frieza comunicativa, que involuntáriamente obriga os outros a reflectirem o meu modo de pouco sentir.
Travo, por índole, rapidamente conhecimentos.
Tardam-me pouco as simpatias dos outros. Mas as afeições nunca chegam. Dedicações nunca as conheci. Amarem, foi coisa que sempre me pareceu impossível, como um estranho tratar-me por tu.
Não sei se sofra com isto, se o aceite como um destino indiferente, em que não há nem que sofrer nem que aceitar.
Desejei sempre agradar.
Doeu-me sempre que me fossem indiferentes.
Órfão da Fortuna, tenho, como todos os orfãos, a necessidade de ser o objecto de afeição de alguém. Passei sempre fome da realização dessa necessidade.
Tanto me adaptei a essa fome inevitável que, por vezes, nem sei se sinto a necessidade de comer.Com isto ou sem isto a vida dói-me.
Os outros têm quem sempre se lhes dedique.
Eu nunca tive quem sequer pensasse em se me dedicar.
Servem os outros: a mim tratam-me bem.
Reconheço em mim a capacidade de provocar respeito, mas não afeição. Infelizmente não tenho feito nada com que justifique a si próprio esse respeito começando quem o sinta; de modo que nunca chegam a respeitar-me deveras.
Julgo às vezes que gozo sofrer. Mas na verdade eu preferiria outra coisa.
Não tenho qualidades de Chefe, nem de sequaz. Nem sequer as tenho de satisfeito, que são as que valem quando essas outras faltem.
Outros, menos inteligentes que eu, são mais fortes.
Talham melhor a sia vida entre gente; administram mais habilmente a sua inteligência. Tenho todas as qualidades para influir, menos a arte de o fazer, ou a vontade, mesmo, de o desejar.
Se um dia amasse, não seria amado.
Basta eu querer uma coisa para ela morrer.
O meu destino, porém, não tem a força de ser mortal para qualquer coisa.
Tem a fraqueza de ser mortal nas coisas para mim.

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